Por Silas Daniel
O QUE PROPÕE
A TEOLOGIA NARRATIVA?
Seguindo os
pressupostos desconstrutivistas, os teólogos emergentes ensinam que a interpretação
de um texto bíblico pode ter vários significados, não sendo possível determinar
um sentido único que seja apresentado como o verdadeiro. O sentido do texto não
estaria dentro do texto, mas fora do texto. Não seria intra-textual, mas
extra-textual. O significado e a interpretação de todos os textos bíblicos
seriam, portanto, relativos e caberia a cada um extrair dos textos bíblicos, sem
preocupar-se com regras de hermenêutica, as lições que achar interessantes, conforme
a necessidade do momento.
Em Uma
ortodoxia generosa, Brian Mclaren declara que a Teologia Narrativa
apresenta um novo conceito de ser bíblico sem estar preso a uma interpretação
rígida das Escrituras e celebra o fato de que essa visão faz a Bíblia se tornar
“não uma enciclopédia de consulta acerca das verdades morais e eternas, mas a
narrativa dinâmica de Deus” (p. 190). Ele, inclusive, se diz incomodado com
conceitos como “autoridade, inerrância, infalibilidade, revelação, objetiva,
absoluta e literal” para se referir à Bíblia, e argumenta que esses conceitos
são invenções, são uma “linguagem que frequentemente usamos em nossas
explicações acerca do valor da Bíblia” e, portanto, não deveriam ser usados
porque não aparecem na Bíblia. “Quase ninguém nota a ironia de se lançar mão da
autoridade de palavras e conceitos extrabíblicos para se justificar a crença na
autoridade suprema da Bíblia” (p. 183).
Porém,
Mclaren esquece ou prefere ignorar que esses termos não foram criados do nada.
Eles são conceitos inferidos da própria Bíblia quando esta fala sobre seu valor
a seus leitores. E como ocorre com o termo trindade, que não aparece na Bíblia,
mas nem por isso podemos dizer que a trindade ou triunidade divina é uma
invenção humana, já que a Bíblia a expressa claramente.
Mclaren não
concorda com o uso desses conceitos para descrever o valor da Bíblia, conceitos
estes depreendidos do próprio texto sagrado, e propõe uma única proposição sobre
o valor das Escrituras, que é o que se segue: “O propósito da Escritura é de
que equipar o povo de Deus para as boas obras. Uma declaração simples como esta
não seria muito mais importante do que declarações com palavras estranhas ao
vocabulário bíblico sobre ela mesma (inerrante, autoritativa, literal, revelatória,
objetiva, absoluta, proposicional, etc)?” (p. 183).
Evitando
esses outros conceitos e abrigando apenas aquele (que é tão bíblico como os
demais), Mclaren apresenta uma definição da Bíblia incompleta com o intuito de
dar sinal verde para todo tipo de interpretação da Bíblia e fazendo do texto
bíblico tão somente uma inspiração para boas obras, quando as Sagradas Escrituras
são bem mais do que isso.
O que Mclaren
e os emergentes desejam é apenas um cristianismo “politicamente correto”, bem
ao estilo pós-moderno, que não confronte visões diferentes, que seja apenas uma
“inofensiva” religião só de boas obras, e não uma fé que se baseia em (e prega
e defende) verdades absolutas. E para sustentar sua posição, o “guru” dos
emergentes compara desonestamente os cristãos que defendem a Bíblia como tendo
um conteúdo atemporal como sendo iguais aos racistas que se dizem cristãos,
quando estes, assim como os emergentes, distorcem o significado do texto
bíblico (pp. 189 e 190).
Não é à toa
que Mclaren defende a Bíblia como sendo “um documento de seu tempo” e não como
“um documento atemporal” (p. 189). Quem defende a Bíblia como um documento
temporal considera que ela só poderá ser usada como um livro motivacional para
boas obras e não como um livro que defende uma verdade absoluta (um termo que
causa arrepios nos defensores do “politicamente correto”). Usando a velha
estratégia emergente da generalização, que consiste em usar maus exemplos como
prova de que a posição conservadora é errada, afirma Mclaren que “nós empacamos
e vagamos sem rumo quando usamos a Bíblia como arma para ameaçar alguém, como
uma ferramenta para intimidar os outros e fazê-los ver que estão errados, como
um atalho para sermos aqueles que sabem tudo, que crêem que a Bíblia tem todas
as respostas”.
Ele ainda
chama tudo isso de “defesa do status quo” e declara que “nada disso corresponde
ao uso que Paulo, o apóstolo, queria que Timóteo, seu protegido, fizesse da
Escritura”. O “guru” dos emergentes diz também que “infelizmente, justamente as
pessoas que mais amam a Bíblia têm sido aquelas que a usam para esses outros propósitos,
às vezes até negligenciando seu propósito essencial [o da Bíblia como
inspiração para boas obras]”. Ou seja, para Mclaren, mesmo que um cristão conservador
se destaque pelas boas obras, ele é lamentável quando defende verdades
absolutas à luz da Bíblia, porque Paulo teria defendido a Bíblia apenas como
tendo o propósito de inspirar boas obras (Mclaren baseia-se especialmente no
final da passagem de 2 Timóteo 3.17) e não como um texto autoritativo,
inerrante, infalível, proposicional e absoluto. Será que Paulo defendeu a
Bíblia como tendo só esse valor? Será que a própria Bíblia não fala dela mesma
como tendo todos esses outros valores? Vejamos o que a própria Bíblia nos diz
sobre esse assunto, inclusive os escritos de Paulo.
Para começar,
vejamos com atenção o que Paulo realmente está dizendo no texto destacado por
Mclaren. Veja se Paulo está se referindo só a um propósito das Escrituras nessa
passagem ou a dois: “Toda a Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar,
para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de
Deus [1] seja perfeito e [2] perfeitamente instruído para toda a boa
obra".
A Bíblia não
é só para nos “instruir perfeitamente para toda a boa obra” (no original grego,
“equipar para toda boa obra”); é também para fazer com que o homem de Deus
“seja perfeito”, isto é, correto em toda a sua forma de viver. Aliás, dizer
como Mclaren diz que os verbos ensinar, redargüir, corrigir e instruir não dão
a idéia de um objetivo proposicional, normativo e autoritativo da Bíblia é
confiar demais na ingenuidade de todos os seus leitores.
O vocábulo
grego traduzido por “perfeito” em 2 Timóteo 3.17 é artios, que só
aparece nessa passagem em todo o Novo Testamento. O vocábulo significa “provido”,
“completo”, “perfeito” ou “aperfeiçoado”. Porém, em seu livro, Mclaren preferiu
propositalmente a tradução menos indicada — “apto” — que favorecia a
interpretação que ele queria dar ao texto, reforçando a segunda das duas
funções das Escrituras mencionadas por Paulo nessa passagem, o que dá a
entender que só existe uma função apresentada ali.
Quando Paulo
fala que as Escrituras são, em primeiro lugar, para que o homem de Deus seja artios,
ele está evocando o mesmo que afirma em Efésios 4, quando diz que Deus deu à
Igreja apóstolos, profetas, evangelistas e pastores e mestres (homens que manejam
a Palavra da Verdade) “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o
desempenho do seu serviço [já que, para sermos bem equipados para as boas
obras, precisamos ser cada vez mais artios], para a edificação do
corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da f é e do pleno
conhecimento do Filho de Deus, àperfeita varonilidade, à medida
da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meninos,
agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de
doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro”
(Ef 4.12-15, grifos do autor).
doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro”
(Ef 4.12-15, grifos do autor).
Agora,
vejamos o que diz Jesus sobre a Bíblia.
Jesus afirmou
que a Bíblia é infalível. Disse Ele que “a Escritura não pode falhar” (Jo
10.35). Logo, a infalibilidade das Escrituras não é uma invenção dos estudiosos
da Bíblia, e as pessoas que tentam encontrar falhas na Bíblia e ao mesmo tempo
dizem que crêem em Jesus estão sendo contraditórias, pois, para empreender essa
busca, já têm que partir do princípio de que Jesus mentiu ou se equivocou ao
dizer que a Escritura é infalível. Ou será que ignoram que Jesus tenha dito
isso? E se não ignoram e dizem crer em Jesus, porque questionam a
infalibilidade?
Outro detalhe
sobre a infalibilidade das Escrituras é que os que tentam contestá-la são
justamente aqueles que desprezam uma hermenêutica correta. Por exemplo, para
tentar provar que há falhas na Bíblia, desprezam a necessidade de atentarmos
para a intenção dos autores bíblicos para entendermos o significado do texto
(mais à frente, ainda neste capítulo, vamos nos dedicar a esse assunto). Um
exemplo: será que quando Josué escreveu que o Sol e a Lua pararam (Js 10.12-15)
ele tinha a intenção de afirmar necessariamente que o Sol e a Lua giram em
torno da Terra ou será que estava apenas descrevendo, com suas próprias
palavras e conhecimento limitado, um milagre que presenciou com seus próprios
olhos após a sua oração?
Como é que
alguém, na época de Josué, descreveria o milagre de o dia ficar prolongado? Não
diria que o Sol e a Lua ficaram estacionados em cantos opostos do horizonte?
Inclusive, ainda hoje nós não dizemos que o Sol “nasce” e “se põe”? Qual era a
intenção do autor ali? Se o texto de Josué fosse uma passagem bíblica em que a intenção
do autor fosse apresentar ou descrever, com base na inspiração e na revelação
divinas, uma verdade sobre o universo (como em Gênesis 1 e 2), aí seria
diferente, mas não é o caso
A Bíblia
também é inerrante, posto que (a) o próprio Jesus asseverou que ela é fidedigna
em seus mínimos detalhes (Mt 5.18): (b) as Escrituras dizem que Deus, que a
inspirou (2Tm 3.16), não pode errar (Hb 6.18; Tt 1.2); e (c) Jesus afirma que a
Palavra de Deus é a verdade (Jo 17.17). Se a Bíblia foi dirigida pelo Deus da
verdade, conforme ela mesma nos diz, então podemos confiar em sua inerrância.
Isto é, todas as vezes que a Bíblia prescreve o conteúdo de nossa fé (doutrina)
e o padrão de nossa vida (ética) ou registra eventos reais (história), ela não
mente, não erra, mas fala a verdade.
Agora, como
já afirmamos em relação à infalibilidade, devemos sempre atentar para a intenção
do autor do texto bíblico. As dificuldades que alguns leitores da Bíblia encontram
em certas passagens são, na maioria esmagadora das vezes, fruto dessa falta de
atenção. Outras são decorrentes de uma leitura
isolada do texto sem olhar o seu contexto, que muitas vezes é toda a Escritura.
Como lembra Bruce Milne, “quando uma passagem da Escritura é interpretada de
acordo com a intenção do escritor e em harmonia com outras passagens bíblicas,
sua verdade inerrante será percebida claramente” (Conheça a verdade, Bruce
Milne, ABU Editora, 1987).
A Bíblia
também é autoritativa e normativa, pois ela mesma se apresenta assim em suas
páginas. Mclaren e os emergentes olvidam o fato, por exemplo, de que o próprio
termo “Escritura” para se referir à Bíblia hebraica e depois ao Novo Testamento
(2Pe 3.15,16) era usado nos tempos bíblicos para descrever o texto sagrado como
autoritativo e normativo. O próprio termo “Palavra de Deus”, que Jesus utilizou
para se referir à Escritura em Marcos 7.7-13, era usado também para demonstrar
que o texto do Antigo Testamento tem valor normativo e autoritativo. Aliás,
nessa mesma passagem, Jesus afirma aos fariseus que a Bíblia está acima da
tradição como referência normativa e chama a Palavra de Deus também de
“mandamento de Deus”. Cristo ainda usou a autoridade das Escrituras para
rebater o Maligno (Mt 4.4) e sempre invocou a Bíblia como normativa e
autoritativa para várias questões (Mt 19.4; 10.34-36).
O Mestre
também aceitou a ética do Antigo Testamento como normativa (Mt 5.17) e a Bíblia
apresenta a lei moral de Deus como algo que devemos obedecer (ver o primeiro
capítulo, quando falamos do “não-legalismo” dos emergentes). O termo “lei”
sugere autoridade e normatividade.
Afora não
aceitar a autoridade e a normatividade como valores essenciais da Bíblia, Mclaren
ainda afirma três absurdos sobre o assunto. Veja o primeiro: “Também a
propósito, [a expressão] ‘a Palavra de Deus’ nunca é usada na Bíblia para se
referir à própria Bíblia. E nem poderia ser diferente, uma vez que a Bíblia,
enquanto coleção de 66 livros, não havia sido ainda compilada” (Uma
ortodoxia generosa, p. 181). Os emergentes olvidam que o Antigo Testamento,
que é chamado de “Palavra de Deus” (como vimos, por exemplo, em Marcos 7.13), é
também chamado de Escritura divinamente inspirada (que é justamente o
significado de “Palavra de Deus”), que é a mesma categoria dada às Epístolas de
Paulo (2 Pe 3.16,17) que, por sua vez, compõem o Novo Testamento. Logo, se o
Novo Testamento é Escritura divinamente inspirada como o Antigo Testamento,
ambos são “Palavra de Deus”.
O segundo
absurdo é afirmar que, sob a ótica protestante, as Sagradas Escrituras foram
ditadas. Diz ele que os protestantes têm tratado a Bíblia “como se Deus a
tivesse ditado” (p. 181). Nada mais falso. Os protestantes sempre afirmaram que
determinados trechos da Bíblia foram
realmente ditados por Deus, como deixam transparecer os escritores bíblicos (Ex
32.16,17; 33.1; Js 1.1, etc), mas a maior parte foi tão somente inspirada, não
ditada. “Os cristãos evangélicos são, com freqüência e injustamente, acusados
de estarem presos à teoria do ditado, mas, na verdade, ela não foi defendida
por qualquer teólogo protestante responsável desde a Reforma até hoje” (Conheça
a verdade, Bruce Milne).
O terceiro
absurdo é pensar que o conteúdo bíblico pode ser adaptado ou aperfeiçoado pelo
entendimento pós-moderno. Refiro-me à contextualização equivocada (no próximo capítulo
falaremos o que é uma contextualização sadia). A leitura da Bíblia proposta
pela Teologia Narrativa pressupõe que cristãos de hoje podem estar mais
evoluídos na compreensão do evangelho do que os cristãos da Igreja Primitiva,
posto que a narrativa da história da Igreja continua até os nossos dias, sendo
os emergentes a última novidade na continuação dessa história. Mclaren insiste
na idéia de que os emergentes são a continuação da evolução da verdade ou da
busca da verdade.
Uma coisa é
você reconhecer que a história da Igreja avança desde a Igreja Primitiva até os
nossos dias, outra coisa totalmente diferente é pensar, como os emergentes acreditam,
que, junto com esse avanço, avança também a compreensão da verdade. É para esse
conceito que apela Mclaren.
Depois de
citar o apartheid como exemplo de leitura equivocada da Bíblia (no que
ele está certo), mas ligando erroneamente o apartheid a uma visão
conservadora da Bíblia (o que é extremamente desonesto), ele afirma: “Temos uma
escolha hoje: nossas leituras trairão o caminho de Cristo na atualidade ou
estabelecerão nosso curso na direção dos sonhos de Deus? Iremos deixar que a
história continue em e através de nós, juntamente com a intenção de
sua trajetória, na direção do sonho imortal e envolvente de Deus chamado
reino de Deus?” (p. 190 — os itálicos são meus). Com “intenção da trajetória”
aqui, Mclaren quer dizer um avanço gradual da compreensão da verdade, como o
próprio conceito de “cristão emergente” sugere, conforme a descrição que ele
mesmo faz do termo no capítulo 19 de Uma ortodoxia generosa (no
segundo capítulo, falamos sobre essa descrição).
É por causa
dessa visão de (1) compreensão evolutiva e de refinamento da verdade, e (2) da
Bíblia apenas como uma obra voltada para nos inspirar às boas obras, sem
nenhuma aplicação normativa, que muitos emergentes normalmente consideram passagens
como as que condenam o homossexualismo ou que soam chauvinistas, conforme a
mentalidade hodierna, como sendo ultrapassadas. Não é à toa que gente como o
incensado Brennan Manning, louvado pelos emergentes como um grande exemplo de
cristão bíblico em nossos dias, apóia igrejas de homossexuais, e os emergentes
acham isso natural. Não é à toa que os emergentes não lutam contra o aborto nem
contra projetos pró-homossexualismo e também não pregam que o cristianismo é a
única verdade, mas, sim, que o evangelho é visto e encarnado também em
religiões não-cristãs e que o viver cristão se resume a boas obras e a não condenar
nada, a não ser aquilo que é “politicamente incorreto”. Sua leitura da Bíblia
está vinculada e condicionada a essa mentalidade.
A partir do
momento que as Escrituras não são mais normativas nem autoritativas, mas tão
somente uma narrativa devocional da evolução espiritual do ser humano que é
acompanhada por um aperfeiçoamento da compreensão da verdade que continuaria a
acontecer em nossos dias, a Bíblia deixa de ser a verdade, tornando-se só um
manual motivacional e inspiracional, perdendo todo o seu real efeito, e a
igreja cristã passa a ser totalmente desfigurada, tornando-se uma religião
apenas de boas obras como qualquer outra, e não a “coluna e firmeza da verdade”
(1 Tm 3.15).
Trecho do livro, A SEDUÇÃO DAS NOVAS TEOLOGIAS - Silas Daniel: CPAD, pp.78-84.