sábado, 25 de maio de 2019

A TEOLOGIA NARRATIVA E A DESCONSTRUÇÃO DA BÍBLIA - PARTE 2



Por Silas Daniel

O QUE PROPÕE A TEOLOGIA NARRATIVA?

Seguindo os pressupostos desconstrutivistas, os teólogos emergentes ensinam que a interpretação de um texto bíblico pode ter vários significados, não sendo possível determinar um sentido único que seja apresentado como o verdadeiro. O sentido do texto não estaria dentro do texto, mas fora do texto. Não seria intra-textual, mas extra-textual. O significado e a interpretação de todos os textos bíblicos seriam, portanto, relativos e caberia a cada um extrair dos textos bíblicos, sem preocupar-se com regras de hermenêutica, as lições que achar interessantes, conforme a necessidade do momento.
Em Uma ortodoxia generosa, Brian Mclaren declara que a Teologia Narrativa apresenta um novo conceito de ser bíblico sem estar preso a uma interpretação rígida das Escrituras e celebra o fato de que essa visão faz a Bíblia se tornar “não uma enciclopédia de consulta acerca das verdades morais e eternas, mas a narrativa dinâmica de Deus” (p. 190). Ele, inclusive, se diz incomodado com conceitos como “autoridade, inerrância, infalibilidade, revelação, objetiva, absoluta e literal” para se referir à Bíblia, e argumenta que esses conceitos são invenções, são uma “linguagem que frequentemente usamos em nossas explicações acerca do valor da Bíblia” e, portanto, não deveriam ser usados porque não aparecem na Bíblia. “Quase ninguém nota a ironia de se lançar mão da autoridade de palavras e conceitos extrabíblicos para se justificar a crença na autoridade suprema da Bíblia” (p. 183).
Porém, Mclaren esquece ou prefere ignorar que esses termos não foram criados do nada. Eles são conceitos inferidos da própria Bíblia quando esta fala sobre seu valor a seus leitores. E como ocorre com o termo trindade, que não aparece na Bíblia, mas nem por isso podemos dizer que a trindade ou triunidade divina é uma invenção humana, já que a Bíblia a expressa claramente.
Mclaren não concorda com o uso desses conceitos para descrever o valor da Bíblia, conceitos estes depreendidos do próprio texto sagrado, e propõe uma única proposição sobre o valor das Escrituras, que é o que se segue: “O propósito da Escritura é de que equipar o povo de Deus para as boas obras. Uma declaração simples como esta não seria muito mais importante do que declarações com palavras estranhas ao vocabulário bíblico sobre ela mesma (inerrante, autoritativa, literal, revelatória, objetiva, absoluta, proposicional, etc)?” (p. 183).
Evitando esses outros conceitos e abrigando apenas aquele (que é tão bíblico como os demais), Mclaren apresenta uma definição da Bíblia incompleta com o intuito de dar sinal verde para todo tipo de interpretação da Bíblia e fazendo do texto bíblico tão somente uma inspiração para boas obras, quando as Sagradas Escrituras são bem mais do que isso.
O que Mclaren e os emergentes desejam é apenas um cristianismo “politicamente correto”, bem ao estilo pós-moderno, que não confronte visões diferentes, que seja apenas uma “inofensiva” religião só de boas obras, e não uma fé que se baseia em (e prega e defende) verdades absolutas. E para sustentar sua posição, o “guru” dos emergentes compara desonestamente os cristãos que defendem a Bíblia como tendo um conteúdo atemporal como sendo iguais aos racistas que se dizem cristãos, quando estes, assim como os emergentes, distorcem o significado do texto bíblico (pp. 189 e 190).
Não é à toa que Mclaren defende a Bíblia como sendo “um documento de seu tempo” e não como “um documento atemporal” (p. 189). Quem defende a Bíblia como um documento temporal considera que ela só poderá ser usada como um livro motivacional para boas obras e não como um livro que defende uma verdade absoluta (um termo que causa arrepios nos defensores do “politicamente correto”). Usando a velha estratégia emergente da generalização, que consiste em usar maus exemplos como prova de que a posição conservadora é errada, afirma Mclaren que “nós empacamos e vagamos sem rumo quando usamos a Bíblia como arma para ameaçar alguém, como uma ferramenta para intimidar os outros e fazê-los ver que estão errados, como um atalho para sermos aqueles que sabem tudo, que crêem que a Bíblia tem todas as respostas”.
Ele ainda chama tudo isso de “defesa do status quo” e declara que “nada disso corresponde ao uso que Paulo, o apóstolo, queria que Timóteo, seu protegido, fizesse da Escritura”. O “guru” dos emergentes diz também que “infelizmente, justamente as pessoas que mais amam a Bíblia têm sido aquelas que a usam para esses outros propósitos, às vezes até negligenciando seu propósito essencial [o da Bíblia como inspiração para boas obras]”. Ou seja, para Mclaren, mesmo que um cristão conservador se destaque pelas boas obras, ele é lamentável quando defende verdades absolutas à luz da Bíblia, porque Paulo teria defendido a Bíblia apenas como tendo o propósito de inspirar boas obras (Mclaren baseia-se especialmente no final da passagem de 2 Timóteo 3.17) e não como um texto autoritativo, inerrante, infalível, proposicional e absoluto. Será que Paulo defendeu a Bíblia como tendo só esse valor? Será que a própria Bíblia não fala dela mesma como tendo todos esses outros valores? Vejamos o que a própria Bíblia nos diz sobre esse assunto, inclusive os escritos de Paulo.
Para começar, vejamos com atenção o que Paulo realmente está dizendo no texto destacado por Mclaren. Veja se Paulo está se referindo só a um propósito das Escrituras nessa passagem ou a dois: “Toda a Escritura divinamente inspirada é proveitosa para ensinar, para redargüir, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus [1] seja perfeito e [2] perfeitamente instruído para toda a boa obra".
A Bíblia não é só para nos “instruir perfeitamente para toda a boa obra” (no original grego, “equipar para toda boa obra”); é também para fazer com que o homem de Deus “seja perfeito”, isto é, correto em toda a sua forma de viver. Aliás, dizer como Mclaren diz que os verbos ensinar, redargüir, corrigir e instruir não dão a idéia de um objetivo proposicional, normativo e autoritativo da Bíblia é confiar demais na ingenuidade de todos os seus leitores.
O vocábulo grego traduzido por “perfeito” em 2 Timóteo 3.17 é artios, que só aparece nessa passagem em todo o Novo Testamento. O vocábulo significa “provido”, “completo”, “perfeito” ou “aperfeiçoado”. Porém, em seu livro, Mclaren preferiu propositalmente a tradução menos indicada — “apto” — que favorecia a interpretação que ele queria dar ao texto, reforçando a segunda das duas funções das Escrituras mencionadas por Paulo nessa passagem, o que dá a entender que só existe uma função apresentada ali.
Quando Paulo fala que as Escrituras são, em primeiro lugar, para que o homem de Deus seja artios, ele está evocando o mesmo que afirma em Efésios 4, quando diz que Deus deu à Igreja apóstolos, profetas, evangelistas e pastores e mestres (homens que manejam a Palavra da Verdade) “com vistas ao aperfeiçoamento dos santos para o desempenho do seu serviço [já que, para sermos bem equipados para as boas obras, precisamos ser cada vez mais artios], para a edificação do corpo de Cristo, até que todos cheguemos à unidade da f é e do pleno conhecimento do Filho de Deus, àperfeita varonilidade, à medida da estatura da plenitude de Cristo, para que não mais sejamos como meninos, agitados de um lado para outro, e levados ao redor por todo vento de
doutrina, pela artimanha dos homens, pela astúcia com que induzem ao erro
(Ef 4.12-15, grifos do autor).
Agora, vejamos o que diz Jesus sobre a Bíblia. 
Jesus afirmou que a Bíblia é infalível. Disse Ele que “a Escritura não pode falhar” (Jo 10.35). Logo, a infalibilidade das Escrituras não é uma invenção dos estudiosos da Bíblia, e as pessoas que tentam encontrar falhas na Bíblia e ao mesmo tempo dizem que crêem em Jesus estão sendo contraditórias, pois, para empreender essa busca, já têm que partir do princípio de que Jesus mentiu ou se equivocou ao dizer que a Escritura é infalível. Ou será que ignoram que Jesus tenha dito isso? E se não ignoram e dizem crer em Jesus, porque questionam a infalibilidade?
Outro detalhe sobre a infalibilidade das Escrituras é que os que tentam contestá-la são justamente aqueles que desprezam uma hermenêutica correta. Por exemplo, para tentar provar que há falhas na Bíblia, desprezam a necessidade de atentarmos para a intenção dos autores bíblicos para entendermos o significado do texto (mais à frente, ainda neste capítulo, vamos nos dedicar a esse assunto). Um exemplo: será que quando Josué escreveu que o Sol e a Lua pararam (Js 10.12-15) ele tinha a intenção de afirmar necessariamente que o Sol e a Lua giram em torno da Terra ou será que estava apenas descrevendo, com suas próprias palavras e conhecimento limitado, um milagre que presenciou com seus próprios olhos após a sua oração?
Como é que alguém, na época de Josué, descreveria o milagre de o dia ficar prolongado? Não diria que o Sol e a Lua ficaram estacionados em cantos opostos do horizonte? Inclusive, ainda hoje nós não dizemos que o Sol “nasce” e “se põe”? Qual era a intenção do autor ali? Se o texto de Josué fosse uma passagem bíblica em que a intenção do autor fosse apresentar ou descrever, com base na inspiração e na revelação divinas, uma verdade sobre o universo (como em Gênesis 1 e 2), aí seria diferente, mas não é o caso
A Bíblia também é inerrante, posto que (a) o próprio Jesus asseverou que ela é fidedigna em seus mínimos detalhes (Mt 5.18): (b) as Escrituras dizem que Deus, que a inspirou (2Tm 3.16), não pode errar (Hb 6.18; Tt 1.2); e (c) Jesus afirma que a Palavra de Deus é a verdade (Jo 17.17). Se a Bíblia foi dirigida pelo Deus da verdade, conforme ela mesma nos diz, então podemos confiar em sua inerrância. Isto é, todas as vezes que a Bíblia prescreve o conteúdo de nossa fé (doutrina) e o padrão de nossa vida (ética) ou registra eventos reais (história), ela não mente, não erra, mas fala a verdade.
Agora, como já afirmamos em relação à infalibilidade, devemos sempre atentar para a intenção do autor do texto bíblico. As dificuldades que alguns leitores da Bíblia encontram em certas passagens são, na maioria esmagadora das vezes, fruto dessa falta de atenção. Outras são decorrentes de uma leitura isolada do texto sem olhar o seu contexto, que muitas vezes é toda a Escritura. Como lembra Bruce Milne, “quando uma passagem da Escritura é interpretada de acordo com a intenção do escritor e em harmonia com outras passagens bíblicas, sua verdade inerrante será percebida claramente” (Conheça a verdade, Bruce Milne, ABU Editora, 1987).
A Bíblia também é autoritativa e normativa, pois ela mesma se apresenta assim em suas páginas. Mclaren e os emergentes olvidam o fato, por exemplo, de que o próprio termo “Escritura” para se referir à Bíblia hebraica e depois ao Novo Testamento (2Pe 3.15,16) era usado nos tempos bíblicos para descrever o texto sagrado como autoritativo e normativo. O próprio termo “Palavra de Deus”, que Jesus utilizou para se referir à Escritura em Marcos 7.7-13, era usado também para demonstrar que o texto do Antigo Testamento tem valor normativo e autoritativo. Aliás, nessa mesma passagem, Jesus afirma aos fariseus que a Bíblia está acima da tradição como referência normativa e chama a Palavra de Deus também de “mandamento de Deus”. Cristo ainda usou a autoridade das Escrituras para rebater o Maligno (Mt 4.4) e sempre invocou a Bíblia como normativa e autoritativa para várias questões (Mt 19.4; 10.34-36).
O Mestre também aceitou a ética do Antigo Testamento como normativa (Mt 5.17) e a Bíblia apresenta a lei moral de Deus como algo que devemos obedecer (ver o primeiro capítulo, quando falamos do “não-legalismo” dos emergentes). O termo “lei” sugere autoridade e normatividade.
Afora não aceitar a autoridade e a normatividade como valores essenciais da Bíblia, Mclaren ainda afirma três absurdos sobre o assunto. Veja o primeiro: “Também a propósito, [a expressão] ‘a Palavra de Deus’ nunca é usada na Bíblia para se referir à própria Bíblia. E nem poderia ser diferente, uma vez que a Bíblia, enquanto coleção de 66 livros, não havia sido ainda compilada” (Uma ortodoxia generosa, p. 181). Os emergentes olvidam que o Antigo Testamento, que é chamado de “Palavra de Deus” (como vimos, por exemplo, em Marcos 7.13), é também chamado de Escritura divinamente inspirada (que é justamente o significado de “Palavra de Deus”), que é a mesma categoria dada às Epístolas de Paulo (2 Pe 3.16,17) que, por sua vez, compõem o Novo Testamento. Logo, se o Novo Testamento é Escritura divinamente inspirada como o Antigo Testamento, ambos são “Palavra de Deus”.
O segundo absurdo é afirmar que, sob a ótica protestante, as Sagradas Escrituras foram ditadas. Diz ele que os protestantes têm tratado a Bíblia “como se Deus a tivesse ditado” (p. 181). Nada mais falso. Os protestantes sempre afirmaram que determinados trechos  da Bíblia foram realmente ditados por Deus, como deixam transparecer os escritores bíblicos (Ex 32.16,17; 33.1; Js 1.1, etc), mas a maior parte foi tão somente inspirada, não ditada. “Os cristãos evangélicos são, com freqüência e injustamente, acusados de estarem presos à teoria do ditado, mas, na verdade, ela não foi defendida por qualquer teólogo protestante responsável desde a Reforma até hoje” (Conheça a verdade, Bruce Milne).
O terceiro absurdo é pensar que o conteúdo bíblico pode ser adaptado ou aperfeiçoado pelo entendimento pós-moderno. Refiro-me à contextualização equivocada (no próximo capítulo falaremos o que é uma contextualização sadia). A leitura da Bíblia proposta pela Teologia Narrativa pressupõe que cristãos de hoje podem estar mais evoluídos na compreensão do evangelho do que os cristãos da Igreja Primitiva, posto que a narrativa da história da Igreja continua até os nossos dias, sendo os emergentes a última novidade na continuação dessa história. Mclaren insiste na idéia de que os emergentes são a continuação da evolução da verdade ou da busca da verdade.
Uma coisa é você reconhecer que a história da Igreja avança desde a Igreja Primitiva até os nossos dias, outra coisa totalmente diferente é pensar, como os emergentes acreditam, que, junto com esse avanço, avança também a compreensão da verdade. É para esse conceito que apela Mclaren.
Depois de citar o apartheid como exemplo de leitura equivocada da Bíblia (no que ele está certo), mas ligando erroneamente o apartheid a uma visão conservadora da Bíblia (o que é extremamente desonesto), ele afirma: “Temos uma escolha hoje: nossas leituras trairão o caminho de Cristo na atualidade ou estabelecerão nosso curso na direção dos sonhos de Deus? Iremos deixar que a história continue em e através de nós, juntamente com a intenção de sua trajetória, na direção do sonho imortal e envolvente de Deus chamado reino de Deus?” (p. 190 — os itálicos são meus). Com “intenção da trajetória” aqui, Mclaren quer dizer um avanço gradual da compreensão da verdade, como o próprio conceito de “cristão emergente” sugere, conforme a descrição que ele mesmo faz do termo no capítulo 19 de Uma ortodoxia generosa (no segundo capítulo, falamos sobre essa descrição).
É por causa dessa visão de (1) compreensão evolutiva e de refinamento da verdade, e (2) da Bíblia apenas como uma obra voltada para nos inspirar às boas obras, sem nenhuma aplicação normativa, que muitos emergentes normalmente consideram passagens como as que condenam o homossexualismo ou que soam chauvinistas, conforme a mentalidade hodierna, como sendo ultrapassadas. Não é à toa que gente como o incensado Brennan Manning, louvado pelos emergentes como um grande exemplo de cristão bíblico em nossos dias, apóia igrejas de homossexuais, e os emergentes acham isso natural. Não é à toa que os emergentes não lutam contra o aborto nem contra projetos pró-homossexualismo e também não pregam que o cristianismo é a única verdade, mas, sim, que o evangelho é visto e encarnado também em religiões não-cristãs e que o viver cristão se resume a boas obras e a não condenar nada, a não ser aquilo que é “politicamente incorreto”. Sua leitura da Bíblia está vinculada e condicionada a essa mentalidade.
A partir do momento que as Escrituras não são mais normativas nem autoritativas, mas tão somente uma narrativa devocional da evolução espiritual do ser humano que é acompanhada por um aperfeiçoamento da compreensão da verdade que continuaria a acontecer em nossos dias, a Bíblia deixa de ser a verdade, tornando-se só um manual motivacional e inspiracional, perdendo todo o seu real efeito, e a igreja cristã passa a ser totalmente desfigurada, tornando-se uma religião apenas de boas obras como qualquer outra, e não a “coluna e firmeza da verdade” (1 Tm 3.15).

Trecho do livro, A SEDUÇÃO DAS NOVAS TEOLOGIAS - Silas Daniel: CPAD, pp.78-84.

quinta-feira, 23 de maio de 2019

A TEOLOGIA NARRATIVA E A DESCONSTRUÇÃO DA BÍBLIA - PARTE 1



Por Silas Daniel


Não há como falar de Igreja Emergente sem falarmos de um de seus pressupostos mais amados: a Teologia Narrativa. Esse pressuposto está vinculado diretamente ao conceito de Hermenêutica Generosa ou Hermenêutica Pós-moderna, de que já falamos. O nome Teologia Narrativa se deve ao fato de que seus adeptos propõem que a Bíblia precisa ser entendida não como uma obra proposicional, que apresenta doutrinas, mas tão somente como uma grande narrativa devocional que deve ser lida e interpretada sem preocupação com as regras de hermenêutica.
A Teologia Narrativa seria, portanto, uma construção teológica supostamente alternativa contra o que os emergentes chamam de repetição dogmática ou rigidez cientifica na interpretação da Bíblia.

ONDE TUDO COMEÇOU

A gênese da Teologia Narrativa, por incrível que possa parecer, se deu com o filosofo ateu, anticristão e anti-valores Friedrich Nietzsche (1844-1900).
Mas, como assim? O que esse filosofo anticristão e anti-Deus tem a ver com uma teologia que se propõe crista?
Nietzsche e considerado o pai da pós-modernidade e tem esse título justamente porque iniciou a crítica contundente e acida a todo tipo de instituição ou de valor absoluto, e esse tipo de crítica acabou sendo absorvido como uma característica básica da pós-modernidade.
Filho de um pastor luterano chamado Karl Ludwig, que morreu prematuramente, Nietzsche inicialmente queria ser pastor como o pai, porém, em 1864, abandonou o projeto para se formar em Filologia. Logo que se formou, conseguiu um emprego como professor de Filologia Clássica na Universidade de Basileia, na Suíça.
Ainda jovem e já lecionando, Nietzsche resolveu publicar seus primeiros livros, mas teve o desprazer de ver suas obras rejeitadas pela crítica a ponto de ter sido até mesmo excluído do círculo de filólogos de sua época. Frustrado e deprimido, Nietzsche decide, então, ser um “espirito livre”, como se definiu, e escrever contra tudo que antes defendera. Se antes escrevera defendendo o musico Wagner e o filosofo Schopenhauer, agora passa a ataca-los. Renuncia o que chamou de “vontade culpada” de Schopenhauer, substituindo-a pelo que define como “vontade alegre”. Se louvara o “espirito alemão”, agora passou a despreza-lo. Em Humano, demasiado humano (1878), sua primeira obra da nova fase, ele afirma que o homem e o criador dos valores, mas costuma esquecer sua própria criação vendo nela algo de “transcendente”, “eterno” e “verdadeiro”, quando os valores não seriam mais do que algo “humano, demasiado humano”. Ele defende as mesmas ideias em dois outros livros: Para além do bem e do mal (1885) e. Para uma genealogia da moral (1887). O britânico C. S. Lewis desintegraria tais ideias brilhantemente nos primeiros capítulos de sua obra Cristianismo Puro e Simples. Ele não foi o único a fazê-lo, mas sua abordagem sobre o assunto e uma das mais precisas.
Em Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo (1888), os ataques de Nietzsche são contra o Estado, as instituições, a moral, o espirito alemão, as ilusões da filosofia e a verdade. Ainda em 1888, publica Anticristo, onde ataca tudo o que é cristão ou esteja “infectado” pelo cristianismo.
Resumindo, Nietzsche, que e mais conhecido por ter declarado “Deus está morto”, negou a existência de qualquer tipo de valor absoluto e proclamou o desprezo as instituições. Terminou louco e assim morreu em 1900, mas a influência dos seus escritos se fez sentir no início do século 20 e, no meio filosófico, especialmente na Franca dos anos 60. Foi ali que, há pouco mais de 40 anos, inspirados por Nietzche, três filósofos — Michel Foucault (1926-1984), Jacques Derrida (1930-2004) e Julia Kristeva (1941-) – iniciaram dois movimentos simultâneos chamados pós-estruturalismo e desconstrutivismo, que, mais tarde, aplicados a hermenêutica bíblica, criaram a Teologia Narrativa.
Foucault foi um famoso filosofo e professor de História dos Sistemas de Pensamento no College de France de 1970 a 1984. Homossexual e adepto de uma vida desregrada, ele faleceu aos 57 anos, em decorrência de AIDS. Porém, antes de morrer, deixou sua marca em favor do pós-estruturalismo e do desconstrutivismo ao criar e popularizar a teoria de que todo tipo de discurso e, no fundo e sempre, uma tentativa de exercer influência e poder sobre as pessoas. Ele era contra todo e qualquer tabu social e tinha aversão ao discurso cristão ou religioso de forma geral.
De origem judaica, Jacques Derrida nasceu na Argélia, então colônia francesa, e sofreu muito em sua infância por causa do anti-semitismo. Já na juventude, tornou-se discípulo confesso dos escritos dos ateus Friedrich Nietzsche, Jean-Jacques Rousseau e Albert Camus. Inspirado nesses seus ídolos, Derrida fundou o desconstrutivismo, tese que propõe a indeterminação do sentido dos textos. Explicando: segundo Derrida, qualquer texto deve ser lido sem procurarmos qualquer intenção do autor por trás dele. Para o francês, só interpretamos melhor uma obra quando não buscamos um proposito autoral por trás dessa obra. Caberia a cada leitor, portanto, dar aos textos o significado que ele mesmo acha que tenham. Outro detalhe e que os significados dados devem ser não apenas independentes do objetivo revelado pelo autor da obra, mas também de qualquer interpretação decorrente dos métodos tradicionais de interpretação de textos. Isto e, os princípios hermenêuticos clássicos devem ser desprezados totalmente. Isso e desconstrutivismo. Já a filosofa franco-búlgara Julia Kristeva, que também e psicanalista e critica literária, além de defender o desconstrutivismo e o pós-estruturalismo, foi líder do movimento feminista na Franca, tendo também exercido forte influência no movimento feminista da Inglaterra e dos Estados Unidos. Ela defende enfaticamente a relativização dos valores, princípio básico da pós-modernidade. Aliás, o pós-estruturalismo, bandeira empunhada pelo trio Foucault, Derrida e Kristeva, e basicamente a negação da existência de verdades absolutas. Foi aplicando o pós-estruturalismo e o desconstrutivismo de Derrida, Foucault e Kristeva a teologia que nasceu a Teologia Narrativa, defendida hoje pela maioria esmagadora dos teólogos adeptos da Igreja Emergente e por alguns cristãos simpatizantes.

Trecho do livro, A SEDUÇÃO DAS NOVAS TEOLOGIAS - Silas Daniel: CPAD. 

sábado, 25 de novembro de 2017

SOLA GRATIA: SOMENTE A GRAÇA


Por Silas Daniel

À luz da Palavra de Deus, a Salvação se dá somente pela graça. Por graça entende-se o favor divino, do qual não somos merecedores. A graça, como enfatizam as Escrituras, precede a salvação, de maneira que, teologicamente, a ação da graça que leva o homem à salvação é chamada de “graça preveniente. O uso do termo “ preveniente” ou “precedente” atrelado ao vocábulo “ graça” é apenas para deixar claro que estamos falando de um a ação divina que antecede a conversão.
A Bíblia nos m ostra que é só através de uma manifestação precedente e preparatória da graça de Deus que a corrupção do coração do homem pode ser suplantada, possibilitando-lhe arrependimento e fé. Paulo, por exemplo, afirma em Romanos 2.4 que é a bondade divina que nos leva ao arrependimento. O próprio Jesus disse aos seus discípulos que é somente través de um a ação precedente do Santo Espírito, convencendo o homem do pecado, da justiça e do juízo, que o pecador pode vir a Cristo (Jo 16.8-11). Ele também asseverou que aquele que vem a Cristo só pôde vir porque antes foi traído (Jo 6.44) e que essa atração é exercida sobre todos os homens (Jo 1.9; 12.32; T t 2.11), em bora muitos deles resistam à ação da graça em seus corações (M t 23.37; Lc 7.30; At 7.51).
A graça salvadora nada mais é, portanto, do que o amor de Deus em ação; é Deus tom ando a iniciativa em relação ao homem caído, e não apenas no sentido de propiciar a sua salvação, mas também no sentido de habilitá-lo a recebê-la e atraí-lo a ela. É ela que concede ao ser humano a possibilidade de corresponder livremente com arrependimento e fé quando Deus o atrai a si. É a graça que possibilita ao homem responder positivamente ao chamado divino. É a graça divina que possibilita ao homem ter livre exercício de vontade para crer ou resistir.
A graça divina, como afirmava o próprio Jacó Armínio, não apenas precede, mas “acompanha e segue” a salvação do crente. Como frisou o teólogo holandês, “ ‘a graça salvadora de Deus’ pode ser interpretada com o primária ou secundária, como precedente ou posterior, como operante ou cooperante, e com o aquilo que bate, ou abre, ou entra” .1 Ela é começo, meio e fim. Aquele que “começou a boa obra” em nós é fiel para “ aperfeiçoá-la até o dia de Jesus Cristo” (Fp 1.6). Uma vez que, à luz da Bíblia, o livre-arbítrio para as coisas de Deus é resgatado pela graça, o livre-arbítrio do homem deve ser entendido como sendo, na verdade, um “ arbítrio liberto”. Além disso, um a vez que vem de Deus essa restauração da capacidade que naturalmente o ser humano não teria de arrepender-se e ter fé para ser salvo, então a capacidade de responder ao chamado divino não deve ser entendida como natural, mas como pertencente à graça.
No seu estado natural, o homem não poderia responder de maneira nenhuma. Ele só pode fazê-lo por uma ação sobrenatural de Deus em seu coração. Nas palavras do teólogo arminiano escocês Ian Howard Marshall (1934-2015), considerado um dos maiores eruditos do Novo Testamento no século 20, a graça preveniente coloca “o homem em uma posição na qual ele possa dizer ‘sim’ ou ‘não’, algo que o homem não poderia fazer antes de Deus tê-lo chamado; [pois] até então ele estava em uma contínua posição de ‘não’”.2
Com o afirma o erudito assembleiano Timothy Munyon, mesmo ainda possuindo “liberdade volitiva” após a Queda, os seres hum anos “ são incapazes de escolher a Deus”; logo, “ Deus, pela sua bondade, equipa as pessoas com um a medida da graça que as capacita e prepara a corresponder ao Evangelho (Jo 1.9; Tt 2.12). O propósito de Deus era ter comunhão com as pessoas que de livre vontade resolvessem aceitar sua chamada universal à salvação. Em conformidade com esse propósito divino, Deus outorgou aos seres humanos a capacidade de aceitá-lo ou rejeitá-lo. A vontade humana foi liberta o suficiente para voltar-se para Deus, arrepender-se e crer”. Ou como disse Lutero no seu Pequeno Catecismo: “Eu creio que por minha própria razão ou força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, hem vir a Ele. Mas o Espírito Santo me chamou pelo evangelho, me iluminou com seus dons, me santificou e me conservou na verdadeira fé”. 3
A Bíblia fala claramente de uma habilitação, capacitação ou preparação da parte de Deus que precede a conversão. Vemos um exemplo dessa manifestação preveniente da graça no relato bíblico da conversão de Lídia. A Bíblia diz que Deus “abriu-lhe o coração” para que pudesse crer (At 16.14), ou seja, através da exposição da Palavra pelo apóstolo Paulo, o Espírito Santo agiu no coração de Lídia, concedendo-lhe a percepção e o arbítrio que ela não tinha para perceber e se decidir pelas coisas espirituais. O Espírito tirou a venda do coração dela, convenceu-a e atraiu-a. E por Lídia ter dito “sim” a essa ação divina inicial de habilitar, desvendar, convencer e atrair, ela passou de convencida a convertida Uma coisa é ser convencido e outra é ser convertido.
Nem todos que são convencidos são convertidos, mas todos que são convertidos precisam antes terem sido convencidos. Em outras palavras, como bem coloca o teólogo Timothy Munyon, “quando cooperamos com o Espírito que nos chama e aceitamos a Cristo, essa cooperação não é o meio da renovação. Pelo contrário, é o fruto da renovação”.4 Nas palavras de Munyon, “para os crentes bíblicos de todas as denominações, a salvação é 100% externa, uma dádiva imerecida de um Deus gracioso. Deus nos tem dado graciosamente aquilo que necessitam os para cumprir o seu propósito na nossa vida: conhecer, amar e servir a Ele”.5 Mas alguém pode se perguntar. “O fato de podermos resistir à graça divina não nos toma, como alguns argumentam, os nossos próprios salvadores?”
Claro que não. Esse argumento é tremendamente falacioso. Em primeiro lugar, como enfatizava John Wesley, a salvação, por ser um a dádiva que não podem os produzir e adquirir de forma alguma por nós mesmos, é “totalmente livre”; ela “não depende de nenhum poder nem mérito do homem em nenhum grau, nem no todo, nem em parte”.6 A esse respeito, a analogia do rico e do mendigo, de Armmio,7 é perfeita: mesmo o mendigo podendo estender a mão, a dádiva continua sendo uma dádiva. Mesmo o mendigo podendo estender a mão, a dádiva continua dependendo totalmente da liberdade do doador. Mesmo o mendigo se preparando para receber a dádiva, seu preparo não é o que lhe garante a dádiva, mas, sim, a liberdade do doador. Só isso já é suficiente para deixar claro que o mérito é todo de Deus, não nosso. Porém, ainda há outros dois detalhes importantíssimos.
Em segundo lugar, a fé não é uma obra. A própria Bíblia – os apóstolos Paulo (Rm 3.27,28; 4.5) e Tiago (Tg 2) em especial – faz distinção entre fé e obras. Estas resultam daquela. Estas não são aquela Fé não possui mérito. Ela não é uma conquista. Ela é tão somente “a entrega da vontade a Deus, o estender de uma mão vazia para receber o dom da graça. Na decisão da fé, nós renunciamos a todas as nossas obras e repudiamos completamente toda reivindicação de autojustificação”.8 A fé exclui a arrogância justamente porque ela é a negação de qualquer mérito pessoal e a aceitação do mérito de outro: Cristo (Rm 3.27).
Paulo assevera em Efésios 2 que somos salvos “pela graça mediante a fé”. Ou seja, não é a fé que salva, porque ela não é nem mérito nem poder para salvação. É a graça que salva, é Cristo. O mérito e o poder são totalmente da graça. A fé é apenas um ato de submissão, entrega, confiança, aceitação dessa salvação propiciada e operada unicamente pela graça divina. A fé é apenas a recepção à graça, uma resposta positiva e passiva à graça É nesse sentido que Jesus dizia “A tua fé te salvou”. Ele não falava no sentido de a salvação ser operada pela fé, mas de ser recebida tão somente pela fé. Daí afirmarmos biblicamente que a salvação é “Sola Gratia” (“Somente a Graça”, no sentido de “Somente pela Graça”) e “ Sola Fide” (“Somente a fé”, no sentido de “Somente pela fé”).
Por fim, em terceiro lugar, é Deus quem nos concede essa possibilidade de crer e receber, que sequer tínhamos. Até mesmo a nossa capacidade de fé e arrependimento é dada por Ele. Como enfatiza Wesley, a salvação “não depende da sua boa disposição, nem dos desejos bons, nem de seus bons propósitos e boas intenções, pois tudo isso flui da graça livre de Deus. Essas coisas são apenas a corrente de água, não a nascente”.9 Tudo advém da graça. Ou, como bem resumiu o pastor e teólogo metodista John Fletcher (1729-1785), “toda a nossa salvação é de Deus; toda a nossa condenação é de nós mesmos”.

NOTAS
(1) ARMÍNIO, Jacó, As Obras de Armínio, CPAD, volume l, 2015, p. 298; e volume 2, p. 297.
(2) MARSHALL, I. Howard, Predestination in the New Testament, in: PINNOCK, Clark (editor), Grace Unlimited, 1975, B ethany Fellow ship, p. 140.
(3) HORTON, Stanley (editor), Teologia Sistemática - Uma Perspectiva Pentecostal, 1996, CPAD, p. 260; LOHSE, Bernhard, A Fé Cristã Através dos Tempos, 1972, Editora Sinodal, p. 172.
(4) HORTON, Ibid, p. 260.
(5) HORTON, Ibid., p. 260.
(6) COLLIN, Kenneth, A Teologia de John Wesley, 2010, CPAD, p. 22Ò!
(7) ARMÍNIO, Ibid., p. 330.
(8) PINNOCK, Clark H. e WAGNER, John D. (editores), Graça para Todos: a dinâmica arminiana da salvação, 2016, Editora Reflexão, p. 23. (9) COLLIN, Ibid., p. 221.


Silas Daniel é pastor, jornalista e autor da obra Arminianismo - A Mecânica da Salvação (CPAD).

Jornal Mensageiro da Paz, outubro de 2017, p.19: CPAD.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

SOLUS CHRISTUS: SOMENTE CRISTO





Por José Gonçalves

No dia 31 de outubro de 1517, o monge agostiniano Martinho Lutero (1483-1546) fixou na catedral de Wittenberg suas famosas noventa e cinco teses. Com esse manifesto, o monge alemão proclamava corajosamente o retomo da igreja ao cristianismo apostólico. No século 16, o catolicismo ainda respirava os ares de um cristianismo medieval fossilizado na sua estrutura e desviado na teologia
Martin N. Dreher destaca que o culto durante o período medieval se tornou em extremo místico: “Vendiam-se desde bolinhas da terra com a qual Adão fora feito até cera dos ouvidos e leite da Virgem Maria, estrume do burro do estábulo de Belém, fios de cabelo e da barba do Salvador. Mostrava-se, inclusive, o prepúcio circuncidado de Jesus. Ao todo, existiam nada menos do que 13 exemplares do prepúcio de Jesus em toda a Europa”.1
Esse misticismo foi marca inequívoca de que o cristianismo afastara-se da Palavra de Deus. A salvação se tornara meritória. A luta dos reformadores forno sentido de a Palavra de Deus voltar a ocupar seu lugar, pois o distanciamento das práticas bíblicas produziu efeitos colaterais, atingindo a moralidade da igreja, bem com o sua Teologia. Ulrich Zuínglio (1484-1531) atacou duram ente os ritos e tradições medievais do catolicismo, bem como a corrupção moral e doutrinária da igreja. Seu anseio era que a igreja voltasse à simplicidade do Novo Testamento. Paulo Anglada observa que Zuínglio: “Destruiu os altares, as imagens e pinturas dos santos, e retirou o órgão da igreja. Para ele tudo 0 que não fosse ensinado n as Escrituras deveria ser eliminado do culto, visto que tem a tendência de afastar as pessoas da verdadeira religião. ‘Se você deixar os ninhos das cegonhas onde estão’, preveniu Zuínglio, ‘elas certamente voltarão para eles’ ”.2
As relíquias dos “ santos” transformaram-se em amuletos e a simples oração foi coisificada nos rosários. A superstição era a ordem do dia. Acreditava-se, por exemplo, que ninguém podia ter um derrame (AVC) ou ficar cego durante uma missa e muito manos envelhecer! Havia imagens cujas barrigas poderiam ser abertas para que se contemplasse a Trindade que estava dentro delas!
A Reforma luterana, portanto, como bem lembra Alister McGrath, foi um reavivamento da teologia.3 Na verdade, uma libertação da teologia que havia empobrecido a doutrina da graça e aprisionado a cristologia. A Reforma trouxe a compreensão de que a salvação do homem não depende de seus méritos, mas inteiramente da graça de Deus. A tradição protestante destacaria que o verdadeiro cristianismo seria avaliado pela sua fidelidade à mensagem da cruz e não pela sua eficiência. Cristo seria o centro da mensagem. Todavia, com o passar dos anos, o cristianismo protestante, também denominado de evangélico, se distanciou de suas origens e como em um processo de osmose assimilou elementos da cultura secular. Quinhentos anos são passados e o fervor da Reforma deu sinais de arrefecimento. Não muito depois da Reforma o processo de secularização produzido pelo advento da modernidade atingiu as igrejas históricas herdeiras dessa mesma Reforma. O cientificismo cartesiano e não a Bíblia passou a ser o aferidor da fé protestante. A razão e não mais a revelação se tornou o parâmetro da fé. Esse reflexo é visto na teologia liberal que varreu a Europa, chegando posteriormente à América. Essa teologia fria, racionalista e secularizada produziu igrejas mortas.
A reação a esse cristianismo apático veio do cristianismo periférico, movido por movimentos de reavivamento, sendo sintetizado no que viria m ais tarde a ser denominado “ movimento de santidade”. Foi desse movimento periférico, m as de uma espiritualidade contagiante, que surgiu o pentecostalismo no final do século 19 e início do século 20. O movimento pentecostal energizou a fé evangélica, tornando-a viva e contagiante. Dez anos após seu advento, o movimento pentecostal já estava espalhado por quase todo o mundo. Todavia, como observou o cardeal belga Leon-Joseph Suenens, “O livre de hoje será o institucional de amanhã” .4 O movimento pentecostal cresceu, mas também inchou! Esse inchamento produziu anomalias, sendo a principal delas a hoje bem conhecida teologia da prosperidade.5 Esse desvio da genuína fé pentecostal também mudaria a metodologia de se fazer teologia e a forma de se enxergar a igreja. O teólogo Luiz Alexandre Rossi destaca que a eficiência é hoje a forma que a teologia da prosperidade adotou para se avaliar a igreja.6 Rossi observa que esse sistema de avaliação não é propriamente da igreja, mas das empresas de “ fast-food”, e cita como exemplo a rede McDonalds. Em sua análise, vivemos uma verdadeira “McDonaldização” da teologia 8.
Como já foi destacado, a Reforma luterana foi uma reforma da teologia. As anomalias, portanto, surgem como consequência das deformações da mensagem da cruz. Não existe cristologia sem cruz! Dietrich Bonhoeffer observou que a mensagem da cruz não precisa de penduricalhos.9 A solução, portanto, está na volta às nossas raízes. Sem Cristo não há vida, não há Igreja, não há salvação.

NOTAS
(1) DREHER, Martin N., Bíblia – Suas Leituras e Interpretações na História do Cristianismo. Editora Sinodal, 2006.
(2) ANGLADA, Paulo. Introdução a Hermenêutica Reformada. Knox Publicações, 2006.
(3) M cGrath, Alister. As Origens Intelectuais da Reforma. Cultura Cristã, 2007.
(4) SUENENS, Léo - Joseph. A Renovação Carismática - um novo pentecostes?, Paulus, Apelação, Portugal, 1999
(5) É um fato que a Teologia da Prosperidade tem sua gênese no pregador batista William Kenyon (1867-154.6) e popularizada pelo pentecostal Kenneth E. Hagin (1917-72003).
(6) ROSSI, Luis Alexandre Solano. Jesus Cristo Vai ao McDonalds, 2011.
(7) GONÇALVES, José. A Prosperidade à Luz da Bíblia. CPAD, Rio de janeiro, 2012.
(8) BONHOEFFER, Dietrich. Resposta às nossas perguntas - Reflexões sobre a Bíblia. Edições Loyola, 2008.


José Gonçalves é pastor, escritor, articulista, comentarista de Lições Bíblicas da CPAD e pastor da Assembleia de Deus em Água Branca (PI).


Jornal Mensageiro da Paz, outubro de 2017, p.18: CPAD.

domingo, 19 de novembro de 2017

A IMPORTÂNCIA DA ESCOLA BÍBLICA E SEUS BENEFÍCIOS


Por Valdemir Pires Moreira

INTRODUÇÃO
Sendo a Escola Bíblica a agência de ensino da igreja, ao mesmo tempo que ensina, ela cumpre os dois lados da Grande Comissão conforme Mateus 28.19-20. Isso é, trata-se de proclamar o Evangelho e ensinar o Evangelho.
O propósito da Grande Comissão é fazer discípulos que observarão os mandamentos de Cristo. Este é o único imperativo direto no texto original deste versículo. A intenção de Cristo não é que o evangelismo e o testemunho missionário resultem apenas em decisões de conversão. As energias espirituais não devem ser concentradas meramente em aumentar o número de membros da igreja, mas, sim, em fazer discípulos que se separam do mundo, que observam os mandamentos de Cristo e que o seguem de todo o coração, mente e vontade (cf. Jo 8.31). (STAMPS, 1995, p. 1452).
Fazendo uma comparação entre a ação da escola pública e a Escola Bíblica, o pastor Antonio Gilberto observa que enquanto a escola pública tem como prioridade o intelecto do educando, a Escola Bíblica tem por prioridade o coração. Cumprindo assim o que está declarado na Carta aos Hebreus 10.16, a ordem é coração e mente, e não ao contrário. (GILBERTO, 2001, p.9).
A educação cristã é fundamental para o crescimento e amadurecimento espiritual de toda a igreja, e a Escola Bíblica é a responsável em educar a todos aqueles que vêm a Cristo. Apesar de o culto de doutrina (ou de ensino) ter sua contribuição na área da Educação Cristã, é na Escola Bíblica que nos é permitido o ensino por meio do diálogo. Vejamos, no entanto, o que é Educação Cristã?

I. O QUE É EDUCAÇÃO CRISTÃ
 Segundo o pastor Claudionor de Andrade, Educação Cristã é um:
"Programa pedagógico que, tendo por base a Bíblia Sagrada, visa ao aperfeiçoamento espiritual e moral dos que se declaram cristãos e daqueles que venham a atender o chamado do evangelho de Cristo." (ANDRADE, 1998, p.?).
A pedagogia divina segue a um processo contínuo que envolve o ser humano por completo (espírito, alma e corpo), conduzindo-o a desenvolver a mente (Rm 12.1), seu aspecto emocional para que entenda a si mesmo e recupere sua auto-imagem (1 Tm 4.16) dentro do contexto em que estamos inseridos. Ela ainda contempla o nosso homem interior, nosso lado espiritual que é o mais beneficiado com esse processo (CARVALHO, 2007, p.76).
Segundo a professora Tema Bueno, como educadores cristãos, temos um alvo:
Que os nossos alunos aprendam a Palavra de Deus. A aprendizagem é um processo, cujo objetivo é a mudança de comportamento. (ver: Dt 6-7; Pv 9.9; Is 48.17; 1Co 14.20). (BUENO, 2012, p.22).

I. A IMPORTÂNCIA DA ESCOLA BÍBLICA
A importância da Escola Bíblica é vista em quatro etapas, são elas:
1. Alcançar.
Alcançar todas as faixas etárias desde o berçário até aos adultos. A Escola Bíblica tem por finalidade alcançar o maior número possível de pessoas com o estudo apropriado para cada faixa etária com estudos metódicos e sistemático da Palavra de Deus.
2. Conquistar.
Muitos são alcançados pelo evangelho de Cristo, mas não permanecem em razão de não serem conquistados. A Escola Bíblica proporciona esse ambiente para se efetivar essa conquista. Lembremo-nos que a conversão se realiza através do ensino (Jo 6.45).
3. Ensinar.
Estamos ensinando aqueles que temos conquistados? Segundo o pastor Antonio Gilberto: “o ensino, deve ser pedagógico e metódico como numa escola, sem contudo, deixar de ser espiritual”. Em outras palavras o ensino dever ser exercido levando em consideração a fé e a razão, a graça e o conhecimento. Devemos ensinar a Palavra de Deus com seriedade e esmero, apropriando-nos dos mais eficazes recursos educacionais que estejam à nossa disposição: “...se é ensinar, haja dedicação no ensino” (Rm 12.7b).
4. Treinar.
Por falta de seminários teológicos em muitas igrejas. A Escola Bíblica vem representando para os aspirantes ao ministério e obreiros, um seminário teológico de currículo variado, flexível e permanente. Dwight L. Moody, o maior evangelista de todos os tempos, converteu-se e iniciou sua formação bíblica e teológica na Escola Dominical.

II. BENEFÍCIOS DA ESCOLA BÍBLICA       
Aqueles que são alunos assíduos da Escola Bíblica e praticantes do que se aprende são beneficiados de várias, dentre elas destacamos:  
1. Crescimento espiritual (2 Pe 3.18).
A carta de Pedro termina com uma nota de exortação e louvor. À medida que as pessoas crescem “na graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”, sua vida e adoração serão louvores a Ele. (STRONSTAD, 2006, p.1748).
2. A comunhão com os irmãos (At 2. 42).
Os crentes se dedicam à “comunhão”. A palavra “comunhão” (koinonia) expressa a unidade da igreja primitiva. Nenhuma palavra em nosso idioma traduz seu significado completamente. Comunhão envolve mais que um espírito comunal que os crentes compartilham uns com os outros. É uma participação comum em nível mais profundo na comunhão espiritual que está “em Cristo”. No lado humano, os crentes partilham uns com os outros, mas a qualidade da comunhão é determinada pela união com Cristo. Eles foram chamados à comunhão (ARRINGTON,2006, pp.639-640)
3. Uma vida bem-sucedida (Sl 1.1-6).
O resultado, para os que fielmente buscam a Deus e à sua Palavra, é ter vida no Espírito. Uma vez que a água comumente representa o Espírito de Deus (e.g., Jo 7.38,39), os que são instruídos por Deus e guardam a sua Palavra terão em si uma fonte de vida inesgotável da parte do Espírito. A expressão tudo quanto fizer prosperará não significa que o crente nunca terá problemas nem reveses, mas, sim, que o justo conhecerá a vontade de Deus e a sua bênção (v.3). (BÍBLIA, 1995, p.817).
  
CONCLUSÃO
Concluiremos esses pensamentos pedindo a Deus sua benção e seu poder sobre a vida de todos que fazem parte do corpo docente e docente, professores e alunos, que possamos nos dedicar ao máximo na proclamação e ensino da Palavra de Deus cumprindo assim, a Grande Comissão, ordenada por nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Claudionor Corrêa de. Dicionário Teológico. Rio de Janeiro: CPAD, 1998.
ARRINGTON, French L & STRONSTAD, Roger. Comentário Bíblico Pentecostal: Novo Testamento. Rio de Janeiro: CPAD, 2006.
BÍBLIA, Bíblia de Estudo Pentecostal: Antigo e Novo Testamento. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Casa Publicadora da Assembleia de Deus, 1995.
BUENO, Telma. Educação Cristã: reflexões e práticas. Rio de Janeiro: CPAD, 2012.
CARVALHO, César Moisés. Marketing para a Escola Dominical: como atrair, conquistar e manter alunos na escola dominical. Rio de Janeiro: CPAD, 2012.
SILVA, Antonio Gilberto da. A Escola Dominical: a história da mais importante
instituição de ensino bíblico e a sua importância para o povo de Deus. Rio de Janeiro: CPAD 2001.
TULER, Marcos. Manual do Professor de Escola Dominical: didática aplicada à realidade do ensino cristão. Rio de Janeiro: CPAD, 1998.

Valdemir Pires Moreira é diácono, casado com Elizangela Pires, bacharelando em teologia, professor da Escola Bíblica Dominical, e secretário da Igreja Evangélica Assembleia de Deus de Caucaia (CE).

Contato: (85) 986471997

Facebook: Vademir Pires Moreira

sábado, 11 de novembro de 2017

FENÔMENOS PENTECOSTAIS




Por José Gonçalves

Pesquisando na internet encontrei esse artigo que escrevi em 2005. Primeiramente foi publicado na revista: O OBREIRO (CPAD), com o título: Espiritualidade e Equilíbrio. Posteriormente esse artigo foi assimilado, de forma resumida, pelo Dicionário do Movimento Pentecostal no verbete "Fenômenos Pentecostais". Nesse tempo eu era pastor na AD de N.S. dos Remédios, PI. É grande, mas vale a pena ler.
“Deus estava perto de nós no culto. Na oração, o Espírito Santo se manifestou Poderosamente. Alguns riam debaixo do poder, outros falavam em línguas, outros profetizavam, e todos se alegraram muito. Nunca vi o poder de Deus derramado num culto como hoje na Vila Correia. O Espírito Santo fez, Ele mesmo, por meio de uma irmã, o convite para os pecadores se converterem. Uma grande multidão se reuniu ao ver esta manifestação maravilhosa do poder de Deus. Também durante a pregação, as bênçãos de Deus caíam sobre os crentes! Aleluia!”1. Foi dessa forma que o missionário Gunnar Vingren descrevia um culto realizado no Estado do Pará no dia 2 de maio de 1913. Percebemos na seqüência alguns termos que já são bem populares no vocabulário pentecostal moderno. São eles: ri debaixo do poder, falar em línguas e profetizar. Fenômenos como esses aconteciam com freqüência entre os primeiros pentecostais. A bem da verdade, esses fenômenos que faziam aflorar as emoções dos crentes não se limitavam aos avivamentos pentecostais, ou ao que outros movimentos avivalistas experienciaram de forma diferente, mas com semelhantes emoções. A questão não deve ser focalizada, portanto, na existência ou não desses fenômenos, mas na maneira como se reage a eles.
Os Perigos dos Pneumatismos Anárquicos
Muito se tem falado na teologia pentecostal moderna sobre os “modismos”, “inovações” e os “excessos” no exercício dos dons espirituais. Pesquisadores sérios como Esequias Soares, Paulo Romeiro e Ricardo Gondim têm demonstrado os perigos doutrinários a que se pode chegar quando um avivamento é divorciado dos princípios bíblicos. 
Há o perigo dos “pneumatismos” que conduzem à anarquia espiritual. Na gênese das seitas que dizem ser criação do Espírito de Deus, encontra-se com abundância as mais insidiosas aberrações teológicas. Esse é um problema que não pode ser simplesmente ignorado por se desejar preservar um evangelicalismo ou um suposto avivamento. Um fato de fácil observação e que merece ser destacado é que uma dicotomia extremada parece querer dominar todos os campos das verdades teológicas. Os dons espirituais, portanto, não são exceções à regra. Já no período de 1742 a 1743, Jonathan Edwards pregou uma série de sermões que, em 1746, veio a se tornar um Tratado Sobre Afeições Religiosas, no qual ele tratava desse problema. N. R. Needham observa que Jonathan Edwards “teve que lutar em duas frentes. Por um lado, tinha que argumentar contra aqueles que descartavam todo o avivamento como histeria irracional; por outro, tinha que argumentar contra aqueles que pareciam pensar que tudo o que aconteceu no avivamento era (de Deus), não importa quão estranho, extremista ou desequilibrado isso fosse. Essas duas posições antagônicas parecem familiares?”2. Uma das faces dessa dicotomia é vista por um lado naqueles que estão prontos a acreditarem e defenderem qualquer fenômeno espiritual sem a mínima preocupação de dar-lhe uma fundamentação bíblica e teológica. Para estes, a regra da validação dos dons espirituais parece ser a sobrenaturalidade. As perguntas que validam tais fenômenos costumam ser: É sobrenatural? É fenomenal? É tremendo? Donde se chega à conclusão: Então é de Deus! Uma outra coisa que precisa ser dita sobre esse modelo de “avivamento” é que ele além de não ser bíblico produz apenas uma espiritualidade superficial nos crentes. A.W.Tozer observou: “Creio que a imperativa necessidade do momento não é apenas de reavivamento, mas de uma reforma radical que atinja a raiz dos nossos males morais e espirituais e que trate mais das causa que das conseqüências, mas do mal que dos sintomas. Minha sincera opinião é esta: nas atuais circunstâncias não estamos desejando de todo um reavivamento. Um vasto reavivamento, do tipo do cristianismo de que hoje temos conhecimento (…) pode bem provar ser uma tragédia moral da qual não nos recuperaremos dentro de cem anos.”3

Os Perigos de uma Ortodoxia Engessante
Por outro lado, as teologias que engessam qualquer manifestação do Espírito Santo caracterizam a outra face da dicotomia. O Espírito Santo parece perder o seu direito de falar para a Igreja hoje. A.W.Tozer já demonstrava uma grande preocupação com essa maneira de enxergar os dons espirituais. Em seu livro O caminho do poder espiritual, ele diz: “Por toda uma geração, certos mestres evangélicos nos têm dito que os dons do Espírito cessaram por ocasião da morte dos apóstolos ou quando se completou o Novo Testamento. Certamente esta doutrina não tem a seu favor sequer uma sílaba de autoridade bíblica. Os que defendem tal idéia devem assumir inteira responsabilidade por essa aberrativa manipulação da Palavra de Deus.”4 Será que na nossa teologia pentecostal de hoje não há mais espaço para as manifestações carismáticas do Espirito Santo? Como obreiro pentecostal, tenho me preocupado com a forte reação negativa aos dons espirituais demonstrada por alguns setores dentro do pentecostalismo. A desculpa de que os fenômenos espirituais no pentecostalismo são pura meninice ou excesso parece muito simplista e não toca no cerne da questão. O teólogo Martin Lloyd Jones já dizia, ao se referir a um avivamento: “E assim temos esta curiosa, estranha mistura, de grande convicção de pecado e grande alegria, um grande senso de temor do Senhor, ações de graças e louvor. Sempre, num avivamento, há o que alguém definiu como uma divina desordem (…) Há ocasiões em que as pessoas estão tão convictas e sentem o poder do Espírito de tal forma que desmaiam e caem no chão, e têm até convulsões, convulsões físicas. E às vezes as pessoas parecem cair num estado de inconsciência, numa espécie de transe, e podem permanecer assim por horas”.5 As manifestações “estranhas”, “meninices” que ocorrem durante a manifestação dos fenômenos espirituais em avivamentos não devem constituir motivo para que não os desejemos. As manifestações periféricas existem e devem ser devidamente tratadas, mas a essência do avivamento é outra. Quem já conviveu e presenciou o exercício dos dons espirituais sabe exatamente o que significa o que o apóstolo Paulo quis dizer: “Assim vós, visto que desejais dons espirituais, procurai progredir, para a edificação da igreja”, 1Co 14.12. Os dons espirituais edificam e tornam o avivamento proveitoso.
Mapeando os Fenômenos de um Avivamento
Dois autores têm se destacado no estudo dos fenômenos espirituais do pentecostalismo e do neopentecostalismo. São eles Jack Deer e John White, respectivamente. Como psiquiatra, Jonh White procura dar explicações sobre as manifestações das emoções nesses avivamentos. Por outro lado, Jack Deer, que possui uma sólida formação teológica (Deer é Doutor em Teologia e ex-professor de Antigo Testamento e hebraico do Dallas Theological Seminary, onde foi instrutor de mestrado por alguns anos), faz um resgate histórico desses fenômenos na história da igreja, procurando sempre mostrar o lado positivo dos fenômenos pentecostais. As obras desses autores foram publicadas no Brasil. Surpreendido pela voz de Deus, Jack Deer (Vida); Surpreendido pelo poder do Espírito, Jack Deer (CPAD); e Quando o Espírito vem com poder, John White (ABU Editora).
Cair no Espírito
Tanto Deer como White têm dado forte ênfase aos dons espirituais. Infelizmente, é justamente na manifestação exterior dos fenômenos espirituais que a batalha tem se concentrado. John Wesley enfrentou forte oposição de outros líderes cristãos justamente porque durante a sua pregação algo incomum acontecia. No seu diário há vários casos relatados. Wesley registrou nele algo que ocorreu durante a sua pregação do dia 25 de abril de 1739: “Imediatamente um, depois outro e outro caíram no chão; eles caíam em toda parte, como atingidos por um raio”. Em outra parte do seu diário, o pai do metodismo registra: “Um, depois outro e mais outro foram lançados ao chão, tremendo excessivamente na presença do Seu poder. Outros gritaram, em voz alta e amargurada: O que devemos fazer para ser salvos?’”.6 O cair sob o poder de Deus ao qual Wesley se refere é conhecido hoje na teologia pentecostal como “cair no Espírito”. A obra The New International Dictionary of Pentecosta and Charismatic Movements observa que essa é “uma expressão moderna para denotar o fenômeno religioso de uma queda individual, sendo que a causa é atribuída ao Espírito Santo. O fenômeno é conhecido entre os pentecostais modernos e na renovação carismática sob vários nomes, incluindo ‘caindo sob o poder’, ‘dominado pelo Espírito’, e ‘descanso no Espírito’’.7 William W. Menzies acrescenta: “Nessas reuniões ardentes (dos pentecostais), não era raro uma pessoa – ou muitas – cair numa espécie de transe, às vezes agitando-se violentamente. ‘Cair no Espírito’ era também um fenômeno muito difundido”. 8 Alguns autores querem diferenciar o “cair sob o poder” no avivamento wesleyano do “cair no Espírito” do pentecostalismo clássico ou moderno, afirmando que em Wesley isso ocorria como conseqüência de uma convicção de pecado, enquanto essa prática no pentecostalismo não apresenta essa mesma evidência. Sem desmerecer essa tese, ela parece muito subjetiva e carece de fundamentação mais sólida. Não há elementos que nos garantam afirmar que alguns fenômenos de “cair no Espírito” hoje não ocorram como conseqüência das mesmas convicções que experimentaram os seguidores de Wesley. Contudo duas observações sobre a ocorrência desse fenômeno parecem ser oportunas agora, e isto se deve ao fato da grande confusão criada em torno desse assunto. 
A primeira é que existe um fenômeno de “cair no Espírito” como manifestação de uma autêntica experiência espiritual bem documentada na história do pentecostalismo clássico; a outra é que existe a manipulação grosseira dessa mesma experiência. Ao se referir aos abusos causados por essa prática, Paulo Romeiro relembra que as Escrituras não oferecem qualquer apoio a esse fenômeno como algo a ser esperado ou buscado na vida cristã normal. Em seguida, Romeiro cita o Dicionário dos Movimentos Pentecostal e Carismático em sua antiga edição, que corrobora o seu pensamento: “A evidência para o fenômeno de ‘cair no Espírito’ é, portanto, inconclusiva. Do ponto de vista experimental, é inquestionável que, através dos séculos, os cristãos têm experimentado um fenômeno psicológico no qual as pessoas caem; além disso, elas têm atribuído o fenômeno a Deus. É igualmente inquestionável que não exista qualquer evidência bíblica para a experiência como algo normal na vida cristã.”9

Rir no Espírito
Apenas relembrando o que disse Gunnar Vingren em seu diário de 1913: “Na oração, o Espírito Santo se manifestou poderosamente. Alguns riam debaixo do poder”. Outra vez é oportuno enfatizar que tal fenômeno de “rir” não se limita ao movimento pentecostal. Jonathan Edwards registra que “sua regozijante surpresa fez com que seus corações estivessem a ponto de dar um salto, de forma que se condicionaram a dar vazão a risadas, lágrimas muitas vezes ao mesmo tempo fluindo numa enxurrada, e em meio a um choro audível”.10. Deve ser dito, no entanto, e com tristeza, que essa prática tem ido a extremos. As bizarrices do “rir no Espírito” veiculadas pela mídia chega a causar náuseas. Ainda possuo comigo uma fita de vídeo (VHS) que recebi dos Estados Unidos. O conteúdo da fita é de um Seminário de Inverno ocorrido na tarde de terça-feira do dia 23 de fevereiro de 1995. A fita fora intitulada When the Spirit Gets to Movin” (Quando o Espírito de Deus se Move). Isso aconteceu no auge daquilo que os apologistas chamam de a “unção do riso”. Após um estudo bíblico, o preletor começa a ministrar a cada pessoa individualmente. Ele encoraja as pessoas a se alegrarem no Senhor. A princípio as coisas acontecem dentro de certa normalidade, mas por fim ficam fora de controle. Há pessoas rindo como numa histeria coletiva por todo o auditório. Outros se contorcem em movimentos bruscos, enquanto outros riem até cair. O excesso e abuso das coisas espirituais ficam em evidência. John White reconhece que essa experiência pode ser imitada, mas argumenta que esse não deve ser o motivo para negarmos a genuinidade da verdadeira. Ao falar do “rir no Espírito”, diz: “Em alguns círculos traz prestígio. Cair no riso do Espírito ou fazê-lo acontecer em outras pessoas pode tornar- se um marco de uma conquista espiritual. Nessas circunstâncias pode-se sentir uma certa pressão. As risadas ficam forçadas e desagradáveis. Mas não podemos desprezar as verdadeiras por temermos as falsas”. Como citei Edwards anteriormente: “Embora haja falsas emoções na religião, e às vezes exaltadas, contudo sem dúvida há também verdadeiras, santas e boas emoções; e quanto mais estas são exaltadas, tanto melhor. E quando são exaltadas a uma altura extremamente elevada, não devem ser objeto de suspeita por causa do seu grau, mas, pelo contrário, devem ser estimadas”. 11
Evitando os Abusos
Seguem algumas diretrizes que julgo serem úteis para um obreiro buscar e se conduzir frente ao avivamento: 
1) Cuidado para que o centro do avivamento esteja em Cristo e não numa manifestação espiritual exterior; 
2) Tenha sempre como fundamento a Palavra de Deus. Tenho observado que muitos pregadores quando ministram numa reunião de avivamento abandonam a Palavra de Deus (ou usam como pretexto nos seus sermões), para se concentrarem nos dons espirituais.
3) Cuidados devem ser tomados com os pregadores que em nome de um suposto avivamento atuam como artista de púlpito, apenas animando o auditório e valendo-se de técnicas psicológicas para provocarem um emocionalismo superficial. Na verdade, esses pregoeiros estão buscando a autoglorificação. 
4) Cuidado com os avivamentos induzidos. Os estudiosos dos avivamentos observam que um avivamento acontece em primeiro lugar como resultado da vontade soberana de Deus. Os avivamentos ocorrem também como conseqüência da busca sincera de um coração puro e ardente pela manifestação da glória de Deus. Foi assim com o avivamento de 1904 no país da Gales com Evans Robert e no grande avivamento pentecostal de 1906 nos Estados Unidos da América. 
5) Cuidado com os pregadores sensacionalistas. Há relatos de pregadores que durante a ministração da Palavra de Deus param de pregar para atender Jesus no celular! Outros fazem coreografia para impressionar a Igreja. 
6) Cuidado com o avivalista que geralmente usa o nome de missionário e profeta, para exibir uma espiritualidade que não possui com objetivo de manipular a igreja e colocá-la sempre contra o seu pastor. 
7) Acompanhe de perto as reuniões de oração em busca de avivamento para que, quando este chegar, você possa canalizá-lo na direção certa.
8) Julgue todas as supostas manifestações espirituais pela Palavra de Deus, não importando o quão espetacular pareçam ser. 
9) Procure ser sensível ao Espírito Santo, pois, quando em um avivamento acontecer alguma manifestação espiritual, Ele lhe dará convicção se aquilo é Dele ou não. 10) Observe os efeitos do avivamento. Se ele não glorificar a Jesus Cristo, não produzir mudança de vida, não promover a derrubada de ídolos, então não é do Espírito de Deus. É o Reavivamento Moderno Profundo? 
Fiquemos como reflexão final com as palavras de Donald Gee, um dos mais importantes representantes do pentecostalismo clássico, que ao analisar o avivamento moderno disse: “Pode ser que eu esteja errado, mas uma das coisas que percebo no reavivamento moderno é a grande tendência de manter a congregação feliz (…) se eu entendo a minha Bíblia, um reavivamento verdadeiro começa por fazer todos infelizes. A verdadeira felicidade começa com a infelicidade, com a preocupação dos pecadores. Outra coisa que me preocupa é a apostasia fácil hoje em dia. Meu receio é que da mesma maneira rápida como as pessoas vêm, elas se vão”. A terceira pergunta a respeito do reavivamento moderno, e que me está causando a mais grave preocupação, é o declínio do sobrenatural. Que Deus conserve o Pentecoste pentecostal! Acredito firmemente que devemos receber a manifestação do Espírito de Deus em nós. Tenho notado, em toda parte, como as reuniões estão seguindo uma rotina: começam com três hinos, depois vêm os pedidos de oração e tudo o mais segue de acordo com o programa. 
A liturgia é boa. “Todavia, numa igreja pentecostal livre, verdadeira, nunca se sabe o que poderá acontecer em seguida. Se o leitor me perguntasse o que considero a mais profunda necessidade entre nós, eu diria que é o arrependimento. Se o arrependimento não estiver no reavivamento, este não terá profundidade suficiente. O arrependimento é o requisito do batismo no Espírito Santo. Fico a pensar se a falta de arrependimento não é a razão dos nossos batismos atuais serem tão superficiais. Oremos por um novo derramamento do Espírito Santo sobre o pregador e sobre todos nós, até que a terra amoleça com uma chuva serôdia, até que tenhamos um profundo reavivamento, reavivamento que nos conservará quebrantados, derretidos e amaciados diante do Senhor."11

Revista Obreiro, Ano 27, n.29, jan-mar, 2005, p.40-45. 

BIBLIOGRAFIA 
1 VINGREN, Gunnar. O Diário do Pioneiro. 5ª edição, Casa Publicadora das Assembléias de Deus, Rio de Janeiro, RJ, 1993. 
2 NEEDHAM, N. R. no prefácio do livro de Jonathan Edwards: “A Genuína Experiência Espiritual”.PES – Publicações Evangélicas Selecionadas. São Paulo, SP.
3 TOZER, A. W. O Caminho do Poder Espiritual Editora Mundo Cristão, São Paulo, SP. 
4 TOZER, A. W. op.cit.
5 JONES, D.M. Lloyd. Avivamento. PES – Publicações Evangélicas Selecionas, São Paulo, SP. 
6 BURGESS, Stanley M. & MAAS, Eduard M. Van. The New International Dictionary of Pentecostal and Charismatic Movements. Zondervan, Grand Rapids, Michigan, U.S.A, 2002. 
7 MENZIES, William W. No Poder do Espírito – fundamentos da Experiência Pentecostal. Editora Vida, São Paulo, SP. 
8 ROMEIRO, Paulo. Evangélicos em Crise. Editora Mundo Cristão, São Paulo, SP pág. 791. 
9 EDWARDS, Jonathan. The Works of Jonathan Edward. Citado por John White em Quando O Espírito Vem Com Poder. ABU – Aliança Bíblica Universitária. 
10 WHITE, John. Quando o Espírito Vem Com Poder. ABU Editora. São Paulo, SP, 1998. 
11 GEE, Donald. Depois do Pentecostes. Editora Vida, São Paulo, SP.

Pastor José Gonçalves é líder da Assembléia de Deus em Senhora dos Remédios (PI), conferencista, escritor e professor de Grego, Hebraico e Religiões Comparadas.