Por Silas Daniel
À luz da Palavra de
Deus, a Salvação se dá somente pela graça. Por graça entende-se o favor divino,
do qual não somos merecedores. A graça, como enfatizam as Escrituras, precede a
salvação, de maneira que, teologicamente, a ação da graça que leva o homem à
salvação é chamada de “graça preveniente. O uso do termo “ preveniente” ou
“precedente” atrelado ao vocábulo “ graça” é apenas para deixar claro que
estamos falando de um a ação divina que antecede a conversão.
A Bíblia nos m ostra
que é só através de uma manifestação precedente e preparatória da graça de Deus
que a corrupção do coração do homem pode ser suplantada, possibilitando-lhe
arrependimento e fé. Paulo, por exemplo, afirma em Romanos 2.4 que é a bondade divina
que nos leva ao arrependimento. O próprio Jesus disse aos seus discípulos que é
somente través de um a ação precedente do Santo Espírito, convencendo o homem
do pecado, da justiça e do juízo, que o pecador pode vir a Cristo (Jo 16.8-11).
Ele também asseverou que aquele que vem a Cristo só pôde vir porque antes foi
traído (Jo 6.44) e que essa atração é exercida sobre todos os homens (Jo 1.9;
12.32; T t 2.11), em bora muitos deles resistam à ação da graça em seus
corações (M t 23.37; Lc 7.30; At 7.51).
A graça salvadora nada
mais é, portanto, do que o amor de Deus em ação; é Deus tom ando a iniciativa
em relação ao homem caído, e não apenas no sentido de propiciar a sua salvação,
mas também no sentido de habilitá-lo a recebê-la e atraí-lo a ela. É ela que concede
ao ser humano a possibilidade de corresponder livremente com arrependimento e
fé quando Deus o atrai a si. É a graça que possibilita ao homem responder positivamente
ao chamado divino. É a graça divina que possibilita ao homem ter livre
exercício de vontade para crer ou resistir.
A graça divina, como
afirmava o próprio Jacó Armínio, não apenas precede, mas “acompanha e segue” a
salvação do crente. Como frisou o teólogo holandês, “ ‘a graça salvadora de
Deus’ pode ser interpretada com o primária ou secundária, como precedente ou
posterior, como operante ou cooperante, e com o aquilo que bate, ou abre, ou
entra” .1 Ela é começo, meio e fim. Aquele que “começou a boa obra”
em nós é fiel para “ aperfeiçoá-la até o dia de Jesus Cristo” (Fp 1.6). Uma vez
que, à luz da Bíblia, o livre-arbítrio para as coisas de Deus é resgatado pela
graça, o livre-arbítrio do homem deve ser entendido como sendo, na verdade, um
“ arbítrio liberto”. Além disso, um a vez que vem de Deus essa restauração da
capacidade que naturalmente o ser humano não teria de arrepender-se e ter fé
para ser salvo, então a capacidade de responder ao chamado divino não deve ser
entendida como natural, mas como pertencente à graça.
No seu estado natural,
o homem não poderia responder de maneira nenhuma. Ele só pode fazê-lo por uma
ação sobrenatural de Deus em seu coração. Nas palavras do teólogo arminiano
escocês Ian Howard Marshall (1934-2015), considerado um dos maiores eruditos do
Novo Testamento no século 20, a graça preveniente coloca “o homem em uma
posição na qual ele possa dizer ‘sim’ ou ‘não’, algo que o homem não poderia
fazer antes de Deus tê-lo chamado; [pois] até então ele estava em uma contínua
posição de ‘não’”.2
Com o afirma o erudito
assembleiano Timothy Munyon, mesmo ainda possuindo “liberdade volitiva” após a
Queda, os seres hum anos “ são incapazes de escolher a Deus”; logo, “ Deus,
pela sua bondade, equipa as pessoas com um a medida da graça que as capacita e
prepara a corresponder ao Evangelho (Jo 1.9; Tt 2.12). O propósito de Deus era
ter comunhão com as pessoas que de livre vontade resolvessem aceitar sua chamada
universal à salvação. Em conformidade com esse propósito divino, Deus outorgou
aos seres humanos a capacidade de aceitá-lo ou rejeitá-lo. A vontade humana foi
liberta o suficiente para voltar-se para Deus, arrepender-se e crer”. Ou como
disse Lutero no seu Pequeno Catecismo: “Eu creio que por minha própria razão ou
força não posso crer em Jesus Cristo, meu Senhor, hem vir a Ele. Mas o Espírito
Santo me chamou pelo evangelho, me iluminou com seus dons, me santificou e me
conservou na verdadeira fé”. 3
A Bíblia fala claramente
de uma habilitação, capacitação ou preparação da parte de Deus que precede a
conversão. Vemos um exemplo dessa manifestação preveniente da graça no relato
bíblico da conversão de Lídia. A Bíblia diz que Deus “abriu-lhe o coração” para
que pudesse crer (At 16.14), ou seja, através da exposição da Palavra pelo
apóstolo Paulo, o Espírito Santo agiu no coração de Lídia, concedendo-lhe a
percepção e o arbítrio que ela não tinha para perceber e se decidir pelas
coisas espirituais. O Espírito tirou a venda do coração dela, convenceu-a e
atraiu-a. E por Lídia ter dito “sim” a essa ação divina inicial de habilitar,
desvendar, convencer e atrair, ela passou de convencida a convertida Uma coisa
é ser convencido e outra é ser convertido.
Nem todos que são
convencidos são convertidos, mas todos que são convertidos precisam antes terem
sido convencidos. Em outras palavras, como bem coloca o teólogo Timothy Munyon,
“quando cooperamos com o Espírito que nos chama e aceitamos a Cristo, essa
cooperação não é o meio da renovação. Pelo contrário, é o fruto da renovação”.4
Nas palavras de Munyon, “para os crentes bíblicos de todas as denominações, a
salvação é 100% externa, uma dádiva imerecida de um Deus gracioso. Deus nos tem
dado graciosamente aquilo que necessitam os para cumprir o seu propósito na
nossa vida: conhecer, amar e servir a Ele”.5 Mas alguém pode se
perguntar. “O fato de podermos resistir à graça divina não nos toma, como
alguns argumentam, os nossos próprios salvadores?”
Claro que não. Esse
argumento é tremendamente falacioso. Em primeiro lugar, como enfatizava John Wesley,
a salvação, por ser um a dádiva que não podem os produzir e adquirir de forma
alguma por nós mesmos, é “totalmente livre”; ela “não depende de nenhum poder
nem mérito do homem em nenhum grau, nem no todo, nem em parte”.6 A
esse respeito, a analogia do rico e do mendigo, de Armmio,7 é
perfeita: mesmo o mendigo podendo estender a mão, a dádiva continua sendo uma
dádiva. Mesmo o mendigo podendo estender a mão, a dádiva continua dependendo
totalmente da liberdade do doador. Mesmo o mendigo se preparando para receber a
dádiva, seu preparo não é o que lhe garante a dádiva, mas, sim, a liberdade do
doador. Só isso já é suficiente para deixar claro que o mérito é todo de Deus,
não nosso. Porém, ainda há outros dois detalhes importantíssimos.
Em segundo lugar, a fé
não é uma obra. A própria Bíblia – os apóstolos Paulo (Rm 3.27,28; 4.5) e Tiago
(Tg 2) em especial – faz distinção entre fé e obras. Estas resultam daquela.
Estas não são aquela Fé não possui mérito. Ela não é uma conquista. Ela é tão somente
“a entrega da vontade a Deus, o estender de uma mão vazia para receber o dom da
graça. Na decisão da fé, nós renunciamos a todas as nossas obras e repudiamos completamente
toda reivindicação de autojustificação”.8 A fé exclui a arrogância
justamente porque ela é a negação de qualquer mérito pessoal e a aceitação do
mérito de outro: Cristo (Rm 3.27).
Paulo assevera em
Efésios 2 que somos salvos “pela graça mediante a fé”. Ou seja, não é a fé que
salva, porque ela não é nem mérito nem poder para salvação. É a graça que
salva, é Cristo. O mérito e o poder são totalmente da graça. A fé é apenas um
ato de submissão, entrega, confiança, aceitação dessa salvação propiciada e
operada unicamente pela graça divina. A fé é apenas a recepção à graça, uma resposta
positiva e passiva à graça É nesse sentido que Jesus dizia “A tua fé te
salvou”. Ele não falava no sentido de a salvação ser operada pela fé, mas de
ser recebida tão somente pela fé. Daí afirmarmos biblicamente que a salvação é
“Sola Gratia” (“Somente a Graça”, no sentido de “Somente pela Graça”) e “ Sola
Fide” (“Somente a fé”, no sentido de “Somente pela fé”).
Por fim, em terceiro
lugar, é Deus quem nos concede essa possibilidade de crer e receber, que sequer
tínhamos. Até mesmo a nossa capacidade de fé e arrependimento é dada por Ele.
Como enfatiza Wesley, a salvação “não depende da sua boa disposição, nem dos
desejos bons, nem de seus bons propósitos e boas intenções, pois tudo isso flui
da graça livre de Deus. Essas coisas são apenas a corrente de água, não a
nascente”.9 Tudo advém da graça. Ou, como bem resumiu o pastor e
teólogo metodista John Fletcher (1729-1785), “toda a nossa salvação é de Deus;
toda a nossa condenação é de nós mesmos”.
NOTAS
(1) ARMÍNIO, Jacó, As
Obras de Armínio, CPAD, volume l, 2015, p. 298; e volume 2, p. 297.
(2) MARSHALL, I. Howard, Predestination in the New
Testament, in: PINNOCK, Clark (editor), Grace Unlimited, 1975, B ethany Fellow
ship, p. 140.
(3) HORTON, Stanley
(editor), Teologia Sistemática - Uma Perspectiva Pentecostal, 1996, CPAD, p.
260; LOHSE, Bernhard, A Fé Cristã Através dos Tempos, 1972, Editora Sinodal, p.
172.
(4) HORTON, Ibid, p. 260.
(5) HORTON, Ibid., p. 260.
(6) COLLIN, Kenneth, A Teologia de John Wesley, 2010,
CPAD, p. 22Ò!
(7) ARMÍNIO, Ibid., p.
330.
(8) PINNOCK, Clark H. e
WAGNER, John D. (editores), Graça para Todos: a dinâmica arminiana da salvação,
2016, Editora Reflexão, p. 23. (9) COLLIN, Ibid., p. 221.
Silas
Daniel é pastor, jornalista e autor da obra Arminianismo - A Mecânica da
Salvação (CPAD).
Jornal Mensageiro da Paz, outubro de 2017, p.19: CPAD.
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